As evidências atuais sugerem que a cirurgia oncológica, usada no tratamento de tumores sólidos, aumenta o risco de metástase. Nesse sentido, uma ampla gama de células tumorais expressa Canais de Sódio Dependentes de Voltagem (CSDV), cujos papéis biológicos não estão relacionados à produção de potencial de ação. Nas células epiteliais tumorais, o CSDV é parte integrante de estruturas celulares denominadas invadópodes, que participam da proliferação, migração e metástase celular. Estudos recentes mostraram que a lidocaína pode diminuir a recorrência do câncer através de efeitos diretos nas células tumorais e de propriedades imunomoduladoras na resposta ao estresse.
ObjetivoO objetivo desta revisão narrativa é analisar o papel do CSDV nas células tumorais e descrever o possível efeito antiproliferativo da lidocaína na patogênese das metástases.
ConteúdoFoi realizada uma revisão crítica da literatura de Abril de 2017 a Abril de 2019. Os artigos encontrados no PubMed (2000−2019) foram analisados. Pesquisamos textos de linguagem livre e descritores MeSH‐lidocaína; canais de sódio dependentes de voltagem; células tumorais; invadópodes; estresse cirúrgico; proliferação celular; metástase; recorrência do câncer−em artigos publicados em inglês, espanhol e português. Foram selecionadas 62 publicações.
ConclusãoEm estudos empregando animais, a lidocaína atua bloqueando o CSDV e outros receptores, diminuindo a migração, invasão e metástase. Esses estudos precisam ser replicados em humanos submetidos a cirurgia oncológica.
The current evidence suggests that oncological surgery, which is a therapy used in the treatment of solid tumors, increases the risk of metastasis. In this regard, a wide range of tumor cells express Voltage‐Gated Sodium Channels (VGSC), whose biological roles are not related to the generation of action potentials. In epithelial tumor cells, VGSC are part of cellular structures named invadopodia, involved in cell proliferation, migration, and metastasis. Recent studies showed that lidocaine could decrease cancer recurrence through its direct effects on tumor cells and immunomodulatory properties on the stress response.
ObjectiveThe aim of this narrative review is to highlight the role of VGSC in tumor cells, and to describe the potential antiproliferative effect of lidocaine during the pathogenesis of metastasis.
ContentsA critical review of literature from April 2017 to April 2019 was performed. Articles found on PubMed (2000−2019) were considered. A free text and MeSH‐lidocaine; voltage‐gated sodium channels; tumor cells; invadopodia; surgical stress; cell proliferation; metastasis; cancer recurrence−for articles in English, Spanish and Portuguese language−was used. A total of 62 were selected.
ConclusionIn animal studies, lidocaine acts by blocking VGSC and other receptors, decreasing migration, invasion, and metastasis. These studies need to be replicated in humans in the context of oncological surgery.
Apesar do progresso no tratamento, o câncer continua sendo uma das principais causas de morbimortalidade global.1 A evidência atual sugere que a cirurgia oncológica, usada no tratamento de tumores sólidos, aumenta o risco de metástase.2–4 O estresse cirúrgico causa imunossupressão perioperatória e a liberação de fatores angiogênicos que permitem a disseminação de Células Tumorais Circulantes (CTC) e o subsequente implante à distância.5 A disseminação de células tumorais, combinada com a imunidade prejudicada no período perioperatório, aumenta a suscetibilidade à recidiva e é considerada a “tempestade perfeita” para a progressão do câncer.6–8 Nesse sentido, uma ampla gama de células tumorais expressa Canais de Sódio Dependentes de Voltagem (CSDV), cujas funções biológicas não estão relacionadas à geração de potenciais de ação.9,10 Nas células epiteliais tumorais, o CSDV faz parte de estruturas celulares denominadas invadópodes, que atuam na proliferação, migração e metástase celular.10,11 Estudos recentes mostraram que a lidocaína poderia diminuir a recidiva de câncer por seus efeitos diretos nas células tumorais e propriedades imunomoduladoras na resposta ao estresse.12,13 A lidocaína age bloqueando o CSDV e outros receptores, sendo utilizada em diferentes situações na prática anestésica, como infiltração local, anestesia regional (peridural, raquidiana, nervos periféricos) e infusão intravenosa no contexto da analgesia multimodal.14 O objetivo desta revisão narrativa é destacar a função desempenhada pelo CSDV nas células tumorais e descrever o potencial efeito antiproliferativo da lidocaína durante a patogênese da metástase.
MétodoFoi realizada revisão crítica da literatura de Abril de 2017 a Abril de 2019. Foram analisados artigos encontrados no PubMed (2000−2019). Pesquisamos textos de linguagem livre e descritores MeSH‐lidocaína; canais de sódio dependentes de voltagem; células tumorais; invadópode; estresse cirúrgico; proliferação celular; metástase; recorrência do câncer−em artigos publicados em inglês, espanhol e português. Selecionamos artigos adicionais a partir das referencias bibliográficas nos artigos encontrados e de revisões anteriores. Resumos, relatos de caso e cartas ao editor foram excluídos. Dos 156 artigos selecionados, 96 foram excluídos. Um total de 62 artigos foi revisado com o objetivo de descrever o papel do CSDV nas células tumorais e os diferentes efeitos da lidocaína nas células cancerígenas. Além disso, descrevemos a aplicação clínica da lidocaína intravenosa.
ConteúdoMecanismos de progressão tumoral e metástaseTanto a cirurgia quanto a anestesia estimulam o eixo hipotálamo‐hipófise e o sistema nervoso simpático, cuja ativação suprime a Imunidade Mediada por Células (IMC), libera catecolaminas e prostaglandinas, induzindo a imunossupressão perioperatória.5 Alguns dos mediadores liberados durante o processo inflamatório e que estão direta ou indiretamente envolvidos na sobrevivência de células tumorais incluem a Interleucina 6 (IL‐6), Interleucina‐1β (IL‐1β), Fator de Necrose Tumoral‐α (TNF‐α), fatores angiogênicos, como Fator de Crescimento Endotelial Vascular (VEGF), espécies reativas de oxigênio, fator induzível por hipóxia‐α e β (HIF‐1α e HIF‐2α) e o fator NF‐kB. O sistema imunológico é fundamental na eliminação de células malignas em formação e desempenha essa função facilitando os mecanismos antitumorais, como a produção de citocinas. As células Th1 liberam IFN‐γ, IL‐2 e TNF‐α e, em contraste, as células Th2 produzem citocinas IL‐4, IL‐5, IL‐10 e IL‐13. O predomínio da resposta Th1 é esperado no combate ao câncer. Por outro lado, sabe‐se que estresse cirúrgico, anestésicos voláteis, opioides e transfusões de sangue favorecem a resposta Th2 que, por sua vez, se manifesta com a supressão imunológica.15 Assim, a cirurgia oncológica aumenta o risco da disseminação tumoral, fenômeno complexo que envolve a liberação de células neoplásicas do tumor primário, invasão local e subsequente implante tumoral em órgãos distantes.16,17 A Célula Tumoral Circulante (CTC) dissemina‐se pelo sangue ou linfa e pode alcançar tecidos distantes.18 A progressão do câncer associa‐se a um subconjunto de células tumorais conhecidas como “células‐tronco cancerígenas” que residem em um microambiente específico dentro do tumor, também chamado de nicho de células‐tronco cancerígenas. O nicho é importante para a manutenção da atividade das células‐tronco cancerígenas, protege‐as dos mecanismos de defesa do hospedeiro e facilita as metástases.19 A prevalência de mecanismos de escape é maior no nicho metastático do que no tumor primário, indicando uma pressão de seleção mais alta durante o processo metastático. Analisando‐se os fatores de risco descritos acima, observamos que estão presentes frequente e simultaneamente no perioperatório da cirurgia oncológica.
Canais de Sódio Dependentes de Voltagem (CSDV)Os CSDVs são típicos de células excitáveis, e são compostos de uma subunidade α (Nav1.1‐Nav1.9) e uma ou mais subunidades β (β1−β4).20 A subunidade α é um complexo proteico heteromultimérico integral que consiste em quatro domínios homólogos (D1−D4), cada um contendo seis segmentos transmembranares α‐helicoidais (S1−S6).21 Tanto as terminações ‐C e ‐N como os domínios de combinação com os ligantes são intra‐citoplasmáticos. Os segmentos S5 e S6 e uma alça‐P em cada domínio formam o poro do canal, que penetra na membrana. Sete dos canais de sódio dependentes de voltagem (Nav1.1 à Nav1.3 e Nav1.6 à Nav1.9) tem funções importantes na eletrogênese dos neurônios. O Nav1.4 é o canal de sódio muscular e o Nav1.5 é o canal predominante nas células musculares cardíacas. A função canônica do canal de sódio na eletrogênese e condução de impulso nessas células excitáveis foi bem demonstrada e é relativamente bem compreendida.22 A lidocaína penetra na membrana neuronal e, pelo efeito do pH, muda para forma não ionizada, ligando‐se ao segmento S6 do domínio subunidade‐4 α dentro do canal de sódio. As propriedades analgésicas e anti‐hiperalgésicas da lidocaína foram demonstradas em estudos in vivo e in vitro.12 A evidência atual mostra que o CSDV é expresso em uma ampla gama de células não excitáveis, como astrócitos, oligodendrócitos, células imunes, células dendríticas, células endoteliais, macrófagos, osteoblastos, odontoblastos, queratinócitos e células tumorais.22 Nas células não excitáveis, a função CSDV não é gerar potencial de ação, mas participar da sobrevivência, diferenciação, proliferação, migração, acidificação endossomal e fagocitose das células. Todas essas descritas como funções não canônicas do CSDV.22,23
CSDV em células tumoraisAs células tumorais usam o CSDV para migrar, invadir e produzir metástases.24 A Transição Epitelial‐Mesenquimal (EMT) é um processo biológico de desenvolvimento celular no qual as células tumorais perdem sua morfologia epitelial e se transformam em células mesenquimais, adquirindo capacidade de invasão.25–27 Durante esse processo, as células tumorais degradam a Matriz Extracelular (MEC) por meio de protuberâncias invasivas denominadas invadópodes25 (fig. 1). O papel dos invadópodes na degradação da MEC é facilitar a invasão dos tecidos adjacentes.26 Os CVSCs estão localizados precisamente nos invadópodes, juntamente com a bomba iônica Na+/H+ tipo 1 (NHE1) e a bomba iônica Na+/Ca++ (NXC).28 Nesse processo meticulosamente organizado, a NHE1 libera H+ acidificando o meio, enquanto o NXC aumenta a concentração intracelular de Ca++. Isso leva à acidificação da região ao redor dos invadópodes, secreção de catepsinas pelas células tumorais e à degradação da MEC. Além disso, a ação do CSDV mantém ativa a enzima Src quinase, promovendo a polimerização dos filamentos de actina. Esses resultados sugerem que a atividade do CSDV nas células cancerígenas aumenta a formação de invadópodes e a atividade de degradação MEC. Um dos CSDV mais estudados no câncer de mama na variante de splicing neonatal é o CSDV 1.5.29 Os estudos in vitro mostraram que bloqueando‐se o CSDV 1.5 com shRNA, ocorre redução da invasão celular. Por outro lado, a ativação do CSDV com veratridina aumenta a invasão da MEC, mostrando a importância do CSDV durante o processo de invasão. In vitro, a ativação do CSDV aumentou o poder metastático devido a maior motilidade e invasão. Assim, as células tumorais se comportam como “células eletricamente excitáveis”, tornando‐se hiperativas e ganhando agressividade, um fenômeno denominado CELEX, hipótese que descreve a progressão metastática tumoral. 30 Várias drogas que bloqueiam o CSDV estão sendo estudadas devido a seus efeitos antiproliferativos nas células tumorais, incluindo fenitoína, carbamazepina, divalproato de sódio, lamotrigina, gabapentina e lidocaína.31–32 Quando analisados em conjunto, esses resultados sugerem que os CSDVs e a Src quinase desempenham um papel crítico, tanto na formação de invadópodes como na atividade proteolítica, facilitando a invasão mesenquimal. A migração e a invasão ocorrem durante o estágio inicial da metástase.
Canais de Sódio Dependentes de Voltagem (CSDV) no invadópode de célula tumoral. Bloqueio pela lidocaína. A Transição Epitelial‐Mesenquimal (do inglês EMT) é um processo biológico de desenvolvimento celular em que as células tumorais perdem a morfologia epitelial, transformam‐se em células mesênquimais e adquirem capacidade de invasão. CSDVs localizam‐se precisamente nos invadópodes. O VGSC mantem a atividade da enzima quinase Src e promove a polimerização dos filamentos de actina. A atividade do VGSC melhora a formação dos invadópodes facilitando a degradação da MEC adaptado de Roger et al. Front Pharm 2015.
A lidocaína e outros anestésicos locais podem ter efeitos diretos nas células tumorais (tabela 1). As células tumorais expressam CSDVs em um extenso espectro de carcinomas, incluindo câncer de mama, colo do útero, intestino, pulmão (mesotelioma, câncer de pequenas células e não pequenas células), câncer de pele, ovário e próstata.21 Lidocaína em concentração clínica bloqueou in vitro as variantes de splicing neonatal no CSDV (Ncsdv 1.5) expressas em linhagens celulares de câncer de mama altamente metastáticas (MDA‐MB‐231).33 Estudos in vitro e in vivo mostram que a lidocaína inibe a migração celular e reduz a viabilidade em todas as linhagens celulares de câncer de mama, incluindo células altamente malignas, como as triplo‐negativas e HER2‐positivas.34 A esse respeito, Fraser et al. sugerem que os anestésicos locais intra e pós‐operatórios podem reduzir a capacidade da célula tumoral produzir metástases ao bloquear o CSDV e, assim, inibir a sua motilidade e invasividade.35 Ações independentes bloqueando o CSDV evidenciaram possíveis propriedades antiproliferativas. Estudos in vitro mostraram que a exposição de células tumorais à lidocaína causa a inibição da tirosina quinase Src, proteína envolvida na proliferação, migração, invasividade e metástase tumoral.36 Também foi demonstrado que a lidocaína e a ropivacaína inibem nas células tumorais a expressão das Moléculas de Adesão Intercelulares (ICAM‐1), que são sintetizadas no processo de metástase. Outro efeito antiproliferativo da lidocaína é a indução de apoptose em cultura de diferentes células tumorais.34–39 Lirk et al. mostraram que a lidocaína interfere no processo de regulação genética, alterando a metilação do DNA em culturas de células cancerígenas. A metilação é catalisada pela enzima DNA Metiltransferase (DNMT1), cujo papel é essencial na patogênese do câncer inibindo o crescimento do tumor. Especula‐se que a lidocaína possa alterar a metilação inibindo o DNMT1. Esse efeito aditivo à quimioterapia, também foi demonstrado com ropivacaína, mas não bupivacaína.40 É importante mencionar que os opióides têm o efeito oposto e são associados à hipermetilação do DNA.41 Ademais, a lidocaína atuaria modulando o Receptor do Fator de Crescimento Epidérmico (EGFR), e dificultando a mobilidade das células tumorais.42,43 Por fim, uma evidência recente mostrou que as células tumorais usam Ca++ para mobilizar, via receptores transitórios tipo V6 (Canal de Cátions Receptor de Potencial Transitório, Subfamília V membro 6, TRPV‐6). A lidocaína bloqueia os canais TRPV‐6, diminuindo os níveis intracelulares de cálcio e, assim, inibindo a migração e a invasão nas células cancerígenas.44 Esses resultados, encontrados em diferentes estudos, demonstraram a ação multimolecular da lidocaína nas células tumorais, o que poderia reduzir o risco de metástases.45
Efeitos diretos da lidocaína nas células tumorais
Referência | Linhagem da célula tumoral | Anestésico local | Efeito direto na célula tumoral | Efeito na atividade da célula tumoral |
---|---|---|---|---|
Fraser 33 | Câncer de mama | Lidocaína | Bloqueio do CSDV | Redução da ativação celular |
Chamaraux 34 | Câncer de mama | Lidocaína | Bloqueio do CSDV | Inibição da migração celular |
Piegeler 36 | Câncer de pulmão | Lidocaína, ropivacaína, clorprocaína | Inibição da Src quinase | Inibição da ativação celular |
Chang 37 | Câncer de mama | Lidocaína, bupivacaína | Indução de apoptose | Induz morte celular em doses clinicamente relevantes |
Wang 38 | Câncer pulmonar de células não pequenas | Lidocaína, ropivacaína | Indução de apoptose | Suprime a invasão e migração de célula tumoral |
Xing 39 | Células de carcinoma hepatocelular | Lidocaína | Indução de apoptose | Suprime crescimento tumoral |
Lirk 40 | Câncer de mama | Lidocaína, procaína | Demetilação do DNA | Inibição do crescimento tumoral |
Sakaguchi 42 | Carcinoma de língua humano | Lidocaína | Modulação do EGFR (Receptor do fator de crescimento epitelial) | Modificação da mobilidade das células tumorais |
Mammoto 43 | Células de câncer humano (HT1080, HOS, e RPMI‐7951) | Lidocaína | Modulação do HB‐EGF (fator de crescimento epidérmico que se liga à heparina ligante) | Inibição da invasão tumoral |
Jiang 44 | Câncer de mama, ovário e próstata | Lidocaína | Inibição doTRPV‐6 | Inibição da migração e invasão da célula tumoral |
No período perioperatório, a cirurgia induz a imunossupressão, desempenhando papel crítico na instalação e no crescimento de lesões metastáticas.5 Foi demonstrado que a lidocaína possui propriedades analgésicas, anti‐inflamatórias e imunomodulatórias e reduz a resposta neuroendócrina provocada pelo estresse cirúrgico.46 Essas ações envolvem o bloqueio de diversos canais, incluindo CSDV, canais K, canais Ca, sistema glicinérgico, receptores acoplados à Proteína G (GPCR) e receptores N‐Metil‐D‐Aspartato (NMDA).47 O efeito analgésico da administração intravenosa resulta do aumento dos níveis de acetilcolina no líquido cefalorraquidiano, o que causa inibição descendente, inibição dos receptores de glicina e aumento na liberação de opioides endógenos. Quando a lidocaína atinge a medula espinhal, reduz a despolarização pós‐sináptica mediada pelos receptores de NMDA e neurocinina, modificando a resposta à dor. O bloqueio de NMDA inibe a proteína quinase C, reduzindo assim a hiperalgesia e a tolerância aos opioides no pós‐operatório. Em modelo animal, a lidocaína age nas fases iniciais da resposta inflamatória sistêmica, modulando a marginalização, adesão e diapedese dos polimorfonucleares em direção ao local da lesão, inibindo a produção de espécies reativas de oxigênio e a liberação de histamina. Esse efeito imunomodulador é obtido pelo bloqueio dos receptores GPCR, pois os polimorfonucleares não apresentam CSDVs. Do ponto de vista oncológico, a lidocaína preserva a função da barreira endotelial e a função citotóxica das células NK.44 A função da barreira endotelial é regulada principalmente pela proteína Src tirosina quinase. O Src é ativado por citocinas inflamatórias, como o TNFα, que são liberadas em resposta ao estresse cirúrgico, permitindo a Síntese das Moléculas de Adesão Intracelular‐1 (ICAM‐1) e iniciando a transmigração e adesão de neutrófilos. Sabe‐se que as células tumorais podem sintetizar ICAM‐1, permitindo a ligação a um neutrófilo, o que resulta em extravasamento e transmigração. Estudos demonstraram que a lidocaína preserva a integridade da barreira endotelial modulando a proteína endotelial Src tirosina quinase, o que impede a disseminação de células tumorais para a circulação sistêmica, uma etapa necessária para a manifestação de metástases. Estudos in vitro analisando células endoteliais microvasculares do pulmão, incubadas com TNFα, lidocaína ou ropivacaína sugeriram que os dois anestésicos locais bloqueariam o receptor de TNFα (RTNFα), impedindo a ativação de Src e a síntese de ICAM.48 Quanto às células NK, fazem parte do IMC, desempenhando um papel vital na detecção e remoção de Células Tumorais Circulantes (CTC), que podem evoluir para micrometástases. Estresse cirúrgico, dor, opioides e agentes voláteis estão envolvidos na diminuição da atividade citolítica das células NK. Por sua vez, mostrou‐se recentemente que a lidocaína em baixas concentrações pode preservar a função citotóxica das células NK.49 Ramirez et al. observaram que a lidocaína, em concentrações inferiores às normalmente encontradas durante a infusão intravenosa, aumentou a citotoxicidade das células NK contra três tipos diferentes de linhagens celulares de leucemia. O mesmo grupo de pesquisadores demonstrou que a lidocaína in vitro apresenta potente efeito estimulador da atividade das células NK contra células pancreáticas, ovarianas e do osteossarcoma. Por fim, Wang et al. mostraram que a lidocaína administrada intravenosamente também pode preservar o equilíbrio entre Th1/Th2 após histerectomia radical por carcinoma de colo uterino.50 A lidocaína intravenosa perioperatória teve efeito benéfico no IMC, e isso foi associado à preservação da proliferação linfocitária e diminuição da apoptose, manutenção do equilíbrio das células Th1/Th2 e diminuição da produção de citocinas. Após a análise de todos os dados clínicos apresentados, sugere‐se que a lidocaína apresente um efeito de potencialização da imunidade, o que pode apoiar seu uso clínico durante o período perioperatório.
Uso clínico da lidocaínaA lidocaína pode ser usada em diferentes situações na prática anestésica, como infiltração local, bloqueios regionais (anestesia peridural, raquianestesia, nervos periféricos) e Infusão Intravenosa (IV) no contexto da analgesia multimodal.14 Recentemente, Brown et al. introduziram o conceito de anestesia geral multimodal, combinaram diferentes agentes antinociceptivos e monitoraram continuamente os níveis de antinocicepção e inconsciência.51 Em relação à infusão intravenosa de lidocaína para analgesia multimodal, Chamaraux et al.52 sugeriram que a administração em cirurgia oncológica poderia ser benéfica devido ao efeito antimetastático na célula tumoral. A infusão intravenosa de lidocaína diminui a exposição aos opioides e agentes voláteis,53 que são agentes anestésicos que suprimem a imunidade mediada por células, promovem a proliferação celular e a angiogênese.54 Os opioides estão associados à imunossupressão por meio da modulação da resposta humoral e celular e de ações diretas nos receptores μ expressos no tumor e células endoteliais.55 Há estudos de agentes voláteis em animais que indicam que o número e a incidência de metástases em modelos experimentais de câncer aumentam56 devido à estimulação do fator‐α Induzível por Hipóxia (HIF‐α),57 que fornece crioproteção e maior sobrevida para a célula tumoral.58 Os agentes voláteis modificam a resposta imune durante o período perioperatório in vitro e em modelos animais,59–60 atuando principalmente na liberação de citocinas. A infusão intravenosa de lidocaína (bolus de 1,5 mg.kg‐1 seguida de 2 mg.kg‐1.h‐1) é o esquema mais amplamente utilizado e melhor descrito. Empregando‐se essa faixa de infusão de lidocaína, são obtidas concentrações plasmáticas de aproximadamente 2 μg.mL‐1. Concentrações plasmáticas superiores a 5 μg.mL‐1 são consideradas tóxicas. No entanto, efeitos adversos e toxicidade são extremamente raros em infusões controladas.46 Recentemente, Greenwood et al. mediram a concentração de lidocaína plasmática de 32 pacientes aos 30 minutos, 6 horas e 12 horas após o início da infusão intravenosa de lidocaína para analgesia após cirurgia colorretal de grande porte. Os pacientes receberam bolus de 1,5 mg.kg‐1, seguido de infusão contínua de lidocaína a 3 mL.hr‐1 (60 mg.hr‐1) ou 6 mL.hr‐1 (120 mg.hr‐1). A concentração média global de lidocaína no plasma foi de 4,0 μg.mL‐1 (variação de 0,6−12,3 μg.mL‐1). Não houve eventos adversos ou relatos de sintomas de toxicidade ao anestésico local.61 Embora haja fortes evidências obtidas de estudos in vitro sugerindo efeito protetor na recorrência do câncer, são necessários mais estudos pré‐clínicos e clínicos para corroborar seu papel na cirurgia oncológica. Diretrizes de consenso recomendaram recentemente o uso de endpoints padronizados na investigação do manejo perioperatório de pacientes com câncer para desenvolver futuras recomendações clínicas.62
ConclusãoCSDVs funcionalmente ativos são expressos em muitas células cancerígenas metastáticas. Nas células tumorais epiteliais, os CSDVs fazem parte de estruturas celulares denominadas invadópodes, envolvidas na progressão do câncer. Esta expressão funcional é um elemento integrante do processo metastático em vários tumores sólidos diferentes. Por esse motivo, os CSDVs podem ser o alvo de terapêuticas visando diminuir a migração, invasão e metástase. A lidocaína atua bloqueando CSDVs e outros receptores e é usada em diferentes situações na prática anestésica. A lidocaína pode ser administrada por via intravenosa e é amplamente utilizada na prática clínica na analgesia multimodal. A lidocaína intravenosa como parte do esquema de anestesia perioperatória seria de grande interesse para os anestesiologistas, pois pode ter o potencial de reduzir o risco de reincidência ou progressão do câncer em pacientes submetidos à cirurgia oncológica. Apesar desses estudos animadores, eles precisam ser replicados em humanos, no contexto de cirurgia oncológica. Embora o conceito de que técnicas anestésicas ou analgésicas poderiam afetar o comportamento do câncer, atualmente não há evidências suficientes para apoiar qualquer mudança na prática clínica.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
AgradecimentosOs autores agradecem a Juan P Cata, MD do MD Anderson Cancer Center, da Universidade do Texas, pela revisão crítica.