A anafilaxia pode ocorrer durante o período perioperatório devido à exposição a diversos agentes capazes de induzir reações de hipersensibilidade. O corante sintético Azul Patente V (APV), também conhecido como Sulfan Blue, é usado na pesquisa de linfonodo sentinela em cirurgia de mama, e é responsável por 0,6% dos eventos anafiláticos relatados. Descrevemos o caso de uma paciente de 49 anos de idade submetida à tumorectomia de mama esquerda com estadiamento de linfonodo sentinela, em que se empregou o APV e que apresentou reação anafilática.
MétodoPor meio do PubMed, pesquisamos publicações que documentavam relatos de casos, séries de casos, revisões e revisões sistemáticas desde 2005, usando as palavras‐chave “anaphylaxis” e “patent blue”. Em seguida, incluímos artigos encontrados na lista de referências dessas publicações.
ResultadosEncontramos 12 publicações relevantes sobre o tópico. Os principais achados estão resumidos, com informações do quadro clínico, tratamento e protocolo de investigação. A hipotensão foi a manifestação clínica mais frequente. De forma geral, o quadro clínico tem início tardio quando comparado à anafilaxia por outros agentes e, ocasionalmente, as manifestações cutâneas estão ausentes. Os pacientes podem ter tido exposição prévia ao APV, que também é usado como corante de alimentos, roupas e medicamentos.
ConclusãoO diagnóstico de anafilaxia em pacientes sob sedação ou anestesia geral pode ser difícil devido às peculiaridades do contexto perioperatório. Segundo a literatura publicada, a apresentação da reação é semelhante na maioria dos casos e um discernimento clínico aguçado é fundamental para enfrentar o evento adequadamente. Encontrar o agente responsável pela reação alérgica é essencial para a prevenção de futuros episódios.
Anaphylaxis is a constant perioperative concern due to the exposure to several agents capable of inducing hypersensitivity reactions. Patent blue V (PBV), also known as Sulfan Blue, a synthetic dye used in sentinel node research in breast surgery, is responsible for 0.6% of reported anaphylactic conditions. We present a case of a 49‐year‐old female patient who underwent left breast tumorectomy with sentinel lymph node staging using PBV and experienced an anaphylactic reaction.
MethodsWe conducted a literature search through PubMed for case reports, case series, reviews, and systematic reviews since 2005 with the keywords “anaphylaxis” and “patent blue”. We then included articles found in these publications’ reference sections.
ResultsWe found 12 relevant publications regarding this topic. The main findings are summarized, with information regarding the clinical presentation, management, and investigation protocol. Hypotension is the most common clinical manifestation. The presentation is usually delayed when compared with anaphylaxis from other agents, and cutaneous manifestations are occasionally absent. Patients may have had previous exposure to the dye, used also as a food, clothes and drug colorant.
ConclusionThe diagnosis of anaphylaxis in patients under sedation or general anesthesia may be difficult due to particularities of the perioperative context. According to the published literature, the presentation of the reaction is similar in most cases and a heightened clinical sense is key to address the situation appropriately. Finding the agent responsible for the allergic reaction is of paramount importance to prevent future episodes.
A anafilaxia perioperatória é uma reação de hipersensibilidade potencialmente fatal. Apresenta incidência estimada de 1 em 10.000 procedimentos anestésicos1 e taxa de mortalidade inferior a 0,001%.2 Os principais agentes responsáveis pela anafilaxia no período perioperatório são antibióticos, látex e bloqueadores neuromusculares. Antissépticos e corantes, como Azul Patente V (APV), também são responsáveis por um número importante de reações.3
O APV é um corante sintético empregado para fins médicos, como no mapeamento linfático para biópsia de linfonodo sentinela no câncer de mama e no melanoma. O APV também é usado como corante nas indústrias têxtil, cosmética e alimentícia (aditivo alimentar número E131). Outros corantes da mesma família também são empregados no estadiamento do câncer de mama, como o azul de isosulfan e o azul de metileno.
Neste relato de caso, pretendemos revisar o diagnóstico e tratamento da anafilaxia por APV durante anestesia geral, a investigação e as implicações futuras. Este relato de caso foi preparado de acordo com as Diretrizes da CARE4 e aprovado pelo Comitê de Ética em Saúde e Comitê Científico de Investigação do hospital.
Relato de casoPaciente do sexo feminino, 49 anos, peso de 80 quilos e altura de 1,60 metros, estado físico ASA II da American Society of Anesthesiologists (obesidade e dislipidemia). Sem alergias conhecidas a medicamentos ou alimentos nem cirurgias anteriores.
A paciente foi submetida à tumorectomia de mama esquerda com estadiamento do linfonodo sentinela sob anestesia geral balanceada e bloqueio do nervo peitoral II. Foi utilizada máscara laríngea de segunda geração. A paciente foi pré‐medicada com dose de 2 mg de midazolam, seguida de 2g de cefazolina para profilaxia antibiótica, sendo esta medida considerada o minuto zero. Após dez minutos, para a indução anestésica foram administrados 0,1 mg de fentanil, 150 mg de propofol e 4 mg de dexametasona. Após 15 minutos foi realizado o bloqueio do nervo com 20 mL de ropivacaína a 0,2%. A cirurgia começou 30 minutos após a administração do antibiótico. Após 45 minutos, ocorreu a administração do corante azul patente. No minuto 55, observou‐se início súbito de hipotensão e bradicardia, seguido de broncoespasmo. O tratamento foi iniciado com 5 mg de efedrina, prova de volume com 500 mL de Ringer lactato (6,25 mL.kg‐1), administração inalatória de 400 mcg de salbutamol, empregando inalador pressurizado dosimetrado usando um adaptador entre a máscara laríngea e o circuito inalatório do ventilador, além de 200 mg de hidrocortisona, a dose máxima recomendada para adultos. Após reavaliação da ausculta pulmonar, observamos reação cutânea maculopapular confluente e azulada na região torácica (fig. 1).
Suspeitamos de reação anafilática como causa das manifestações e administramos 0,5 mg de adrenalina intramuscular e 2 mg de clemastina, um antagonista H1da histamina, observando‐se melhora hemodinâmica e respiratória. Outras possíveis causas, como complicação hemorrágica, toxicidade do sistema anestésico local ou embolia pulmonar foram consideradas, mas excluídas quando a reação cutânea se tornou evidente.
Devido à estabilidade clínica e hemodinâmica, optou‐se pela conclusão da cirurgia e acordar a paciente da anestesia. Após a retirada dos campos cirúrgicos, ficou evidente a extensão do exantema azul em toda a superfície corporal (fig. 2). Após cateterismo uretral, observou‐se urina de coloração esverdeada (fig. 3).
A paciente foi internada na unidade semi‐intensiva para vigilância clínica. Após 24 horas, com a resolução das manifestações cutâneas, a paciente recebeu alta da unidade semi‐intensiva para a enfermaria, e após 2 dias, foi encaminhada para casa, sem maiores complicações. A seguir, a paciente fez consulta no setor de alergia e imunologia, onde foram realizados o Teste cCutâneo por Puntura (TCP), Teste Intradérmico (TID) e Teste de Provocação a Drogas (TPD). O TPD foi negativo para dexametasona, ropivacaína e midazolam. O TCP e o TID foram negativos para propofol, fentanil, cefazolina e látex. APV a 2,5% foi usado para TCP e 0,00025% para TID e ambos foram positivos. O TCP para azul de metileno, outro corante da mesma família do APV, também apresentou resultado positivo.
DiscussãoEste caso ilustra um cenário frequentemente enfrentado pelos anestesiologistas: instabilidade cardiocirculatória e/ou respiratória de início súbito que requer cuidados imediatos de suporte, ao mesmo tempo em que o diagnóstico é pesquisado. O exame físico completo no intraoperatório nem sempre é possível, mas é uma ferramenta importante que deve ser lembrada.
Vários relatos de caso, séries de casos e estudos retrospectivos de reações alérgicas ao APV foram publicados nos últimos anos.5‐10 No Reino Unido, o 6° Projeto de Auditoria Nacional (NAP6)3 avaliou a prevalência das reações de grau 3–4 (Escala de Ring e Messmer)11 (tabela 1) no período perioperatório. Após revisão de 266 notificações, APV foi responsável por 9 casos. Com base nas estimativas daquele estudo, a incidência de anafilaxia de grau 3–4 ao APV foi de 14,6 por 100.000 administrações, maior do que a succinilcolina.
Classificação de gravidade de reações anafiláticas de acordo com Ring e Messmer
Grau | Sintomas |
---|---|
I | Sintomas cutâneos e/ou discreta reação febril |
II | Detectável, mas sem risco de vida |
Alteração cardiovascular (taquicardia, hipotensão) | |
Distúrbio gastrointestinal (náuseas) | |
Distúrbio respiratório | |
III | Choque, espasmo de músculos lisos (brônquios, útero) com risco de vida |
IV | Parada cardíaca e/ou respiratória |
Johansson et al.5 e Barthemes et al.6 descreveram os aspectos clínicos dessas reações analisando o registro nacional de anafilaxia e dados de outros estudos em andamento, respectivamente. O primeiro autor estudou um grupo de 7.917 pacientes que receberam APV e um total de 42 (0,5%) desenvolveram reações alérgicas de grau I–III. O segundo identificou 9 com anafilaxia para APV do registro nacional norueguês para reações anafiláticas durante a anestesia.
A partir desses e de outros relatos de casos, identificamos manifestações clínicas comuns das reações. Os primeiros sintomas habitualmente iniciam‐se 5 a 25 minutos após a injeção do corante, dependendo do tempo necessário para que atinja a circulação central.3,5,7 Alguns casos relatam mais de 60 minutos. As reações mais graves tendem a ocorrer mais precocemente após a injeção do corante.5
No paciente anestesiado, a hipotensão arterial e a taquicardia frequentemente anunciam o início da reação.5,7,10 Sintomas cutâneos como eritema e/ou urticária são característicos, mas nem sempre presentes.3,5 A urticária de cor azul é mais comum nas reações tardias e é mais vívida perto da área da injeção.5 O aparecimento de manifestações cutâneas coloridas em outras partes do corpo pode ser explicado pela exposição prévia ao alérgeno em roupas e cosméticos, por exemplo.5,7,8,10
A coloração azul ou verde do plasma, urina e da pele costumam durar 24 horas, mas em alguns casos, pode persistir.7 A coloração cutânea após o uso de APV pode persistir de uma semana a 25 meses, mesmo se não associada a anafilaxia.12
Prurido, dispneia e sintomas gastrointestinais são mais comuns no paciente acordado, quando o APV é usado no pré‐operatório para mapear nódulos.9
A resposta à prova de volume, à posição de Trendelenburg e à efedrina geralmente é ruim, e a maioria dos pacientes precisa de adrenalina para reverter o choque.5 A parada cardiorrespiratória geralmente ocorre na forma de atividade elétrica sem pulso.3 Nenhum óbito foi descrito na literatura como resultado da anafilaxia por APV.
Reações bifásicas têm sido descritas e são atribuídas à lenta liberação do corante do tecido subcutâneo, que foi a via de administração para a circulação central.8
Considera‐se que a reação alérgica ao APV seja mediada por IgE.5,8,10,13 A triptase sérica geralmente está aumentada em todos os pacientes, exceto em alguns casos com sintomas discretos,5 indicando a degranulação dos mastócitos após a exposição ao complexo alergênico‐IgE. A reação anafilática geralmente ocorre após exposição prévia ao alérgeno, justificada pela presença dessa molécula em alimentos, roupas e medicamentos.5,7,8,10 Embora o azul de metileno seja estruturalmente diferente do APV, a reatividade cruzada foi descrita10 e estava presente nesta paciente.
No contexto perioperatório, como na indução da anestesia geral, em que vários medicamentos são administrados em curto espaço de tempo, a identificação do agente etiológico da reação anafilática requer diversos exames. Os principais instrumentos diagnósticos para a investigação são o teste cutâneo por puntura e o teste intradérmico.
Haque et al.14 propuseram um protocolo de investigação que necessita de validação prospectiva e que se inicia com o TCP para APV 1:10 (2,5 mg.mL‐1) que, se negativo, é seguido por TCP para APV 1:1 (25mg.mL‐1). Se ambos forem negativos, executa‐se o TID para APV 1:100. Qualquer resultado positivo confirma o diagnóstico de alergia ao APV. No presente relato de caso e naquele descrito por Viegas et al.10 o teste IDT foi feito com APV 1:10000.
Alguns autores sugerem evitar o APV em pacientes com história de alergia a alimentos contendo E131, e que a pré‐medicação com corticosteroides pode diminuir a gravidade da reação anafilática.6
ConclusõesÉ de vital importância o reconhecimento e a interpretação dos sinais e sintomas da anafilaxia, levando‐se em conta as particularidades inerentes ao paciente anestesiado. A administração precoce de adrenalina, a manutenção da permeabilidade das vias aéreas e da oxigenação e a ressuscitação volêmica são as bases fundamentais do tratamento. Os diferentes agentes aos quais os pacientes são expostos em curto espaço de tempo dificultam a identificação do agente desencadeante, mas algumas características clínicas podem sugerir um em particular. O encaminhamento para consulta com o alergista é fundamental para a investigação e prevenção de episódios futuros.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.